José Brito, técnica mista s/tela, 97x130 cm, 2003
JOSÉ BRITO
EVOCAÇÃO DA MEMÓRIA
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1 referência ao artigo «Lugar aos Novos», de R. Sousa, JL 10.02.99
2 referência ao artigo anterior e a propósito de uma análise de Cristina Tavares
3 referência por excertos do prefácio de António Rodrigues para a exposição de José Brito realizada no Brasil e Itália, em 2001.
ROCHA DE SOUSA
Faculdade de Belas-Artes de Lisboa
EVOCAÇÃO DA MEMÓRIA
Um dia, ao entardecer, após rasgar as notícias da época, depois de as colar intencionalmente num suporte plástico, José Brito terá imaginado que sentido havia naquele caos, o ruído do mundo, e como tornar consensuais, na semelhança, as diferenças dos lugares e dos gritos, a evocação da própria memória. Havia nisso uma espécie de projecto pleonástico – não se evoca o que já é evocação – mas ao jogo cruzado e fecundo da pintura tais incongruências pouco importam: dizer errado o que é certo na expressão da linguagem pictórica toca mais de perto a verdade interior do que a gramática laminar e respectivas erudições.
Antes do mais, um pintor é poeta, e o seu discurso não tem as orações medidas, tem a medida do sonho e da subversão incandescente das palavras. «Não basta evocar o céu azul» – título de um dos seus quadros de José Brito – e isso pode ajustar-se ao ser dessa aparência enquanto outros céus se desvanecem ou retornam ao eventual devaneio do nosso olhar: são memórias evocadas e de novo trabalhadas para alargar a consciência do espaço e do tempo.
Ao princípio, em 1999, José Brito tapava o espaço e as próprias memórias colando papéis sobre papéis e ocultando o nexo dos textos com uma imensa arquitectura de manchas negras. Embora por cima dos papéis ainda visíveis viessem deslizar tintas de diversas tonalidades, o preto unificava tudo, consensualizava os opostos, opacificava o horror e o excesso de cada notícia.1 A essas composições o autor chamou «Parede de Memórias» – e a razão que lhe assistia baseava-se no muro de destroços que os jornais anunciavam, sobrepostos ou justapostos, como os cadáveres carregados de memórias ainda bem vivas, apodrecimento prévio antes da vala comum, coisas suspeitadas através das grades oleosas e negras, novo muro férreo que nos barrava o olhar, a notícia de cada morto, de gente e mantas rotas atrás das peles engelhadas, vermelhos de sangue, letras da clandestinidade, ocres de papéis queimados, cinzas do cotim amarrotado. A memória dessas paredes pode renascer (evocada) das imagens que o cinema nos ensinou a descobrir, passando-as devagar perante a câmara fixa na gare ferroviária, os nossos olhos como que grudados à janela da óptica.
De um ponto de vista estritamente técnico – deixando agora um pouco de lado a nossa leitura subjectiva – a evolução daquele processo levou o autor a trabalhar com intuitos mais seguros, apelando ao «desarranjo como arranjo, à sobreposição como justaposição, à diversidade na unidade».2 José Brito conferia assim, por estranho que
pareça, homogeneidade à composição, leituras imprevistas conforme a distância, convidando o observador a recuar e a avançar – forma quase cínica de exprimir a harmonia das cores e do preto, entre salpicos e cintilações, da mesma forma que brutalizava o olhar próximo no desvendamento de pedaços de textos, notícias sobre os desastres principais, alegrias patéticas de um consumo enlatado.
A parede de memórias consolidava-se e os comboios partiam. Depois, à medida que o tempo dominou o espaço de outra forma, também José Brito se abriu mais ao compromisso, entre «Há petróleo na Galiza» e «Não basta evocar o céu azul». Então o negro por vezes entorna-se, como crude, na horizontal sem limite e a «parede» cai para lá das águas salgadas, voltando às praias empapadas de uma matéria oleosa e espessa, na qual rolam, mortas, gaivotas e outros pássaros do habitat meridional. Claro que nada disto está escrito no quadro, a função da pintura, embora possa conter uma dimensão pedagógica e poética, não consiste em substituir-se à leitura das catástrofes ilustradas na comunicação social. E contudo, em exemplos raros de uma grandeza absoluta, certos artistas conseguiram aquela impossibilidade, geminando crimes, tragédias, guerras, gritos de mães diante dos filhos estilhaçados ou gargantas de cavalos urrando, além de restos de armas e de homens, atordoando os céus com a sua agonia sem nome. Foi Picasso quem conseguiu tudo isso, de uma só vez, num só quadro, figurando os bocados do mundo a preto e cinzas, e conservando apenas, suspensa do tecto, uma lâmpada nua.
Serei castigado por escrever isto a propósito de subtilezas meio encobertas na pintura de José Brito. O pântano em que a sua indignação ferve não mostra nenhum outro horror no horizonte, apenas coisas sobrepostas e um irremediável adormecimento da tarde. Há madrugadas também, arquitecturas brancas suspensas na falésia sombria, medindo pela luz da lua a hipótese de um novo dia reescrever a vida – tempo de «Agarrar o horizonte pela ponta dos dedos». Entretanto a noite torna-se mais densa, as coisas quase invisíveis, surpreendemos rochas de cinza a cercar um azul porventura marítimo, e por fim a palavra público em papel baço, legível, inteira, numa madrugada de assombros.
Recorrendo à memória, a memória que tanto evoca como pode ser evocada, os quadros de José Brito, os mais antigos, completam a lógica do círculo, o caminho da nossa travessia pela sala de exposições. E o consenso chega, as diferenças justificando a semelhança. É a madrugada, presumo, entre os negros construtivos da composição – e de novo os papéis, as palavras, as vozes, uma matéria como suporte de tintas com algum valor lumínico, ocres pálidos, rosas, brancos meio escondidos, roxos brandos. A chegada a este ponto corresponde a uma nova partida. E o grau de informação por onde se fez parte da nossa deriva ganha agora o contorno da paisagem, voltando a administrar as tensões entre obscuridades e fragmentos luminosos, traços de um mundo da comunicação escrita e das sujidades urbanas. O pintor, quadro a quadro, parece desenvolver a apropriação transitória do visível e logo a passagem ao esquecimento. Brito reconstrói o lado da sua pintura em que «a teia da incomunicabilidade» pode impor o seu «fluxo pulsional de indivíduo a qualquer constrangimento provocado pelos interesses da comunicação social».3
O que importa, por último, entre esses interesses e o gesto de libertar cores ou palavras no centro negro do pântano, é saber, de consciência aberta, o sentido possível desse gesto na concavidade da memória.
1 referência ao artigo «Lugar aos Novos», de R. Sousa, JL 10.02.99
2 referência ao artigo anterior e a propósito de uma análise de Cristina Tavares
3 referência por excertos do prefácio de António Rodrigues para a exposição de José Brito realizada no Brasil e Itália, em 2001.
ROCHA DE SOUSA
Faculdade de Belas-Artes de Lisboa
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