MEMÓRIA NOCTURNA DO MUNDO
Este não é o mundo que eu
conheço, ou conheci, mas alguma parte nocturna dele. É porventura um mundo
encoberto, que se tornou parietal e que os morcegos pintaram primeiro com
colagens e velhos jornais de parede. Eles ou alguém por eles, gente do mundo
urbano mal iluminado, cola escorrendo entre muros de madeira, portas, betão
envelhecido. Os jornais voando das mãos para o empedrado das ruas e mais tarde,
em colunas de história, pegados nas paredes poeirentas. Grandes trinchas de
pintores murais, gente do biscate na rua ou dentro das casas húmidas, assim
chegam para arranjar bolores, farelos provocados pelos invernos mais duros,
frinchas, fracturas, painéis internos onde sobram, no protoplasma da sua
transitória ausência, centenas de silhuetas de pequenos e médios quadros,
retratos, memória de infâncias ou paisagens depois delas.
A história também envelhece, por
dentro e por fora dos espaços urbanos, sobretudo quando fica resumida aos
títulos sem gramática dos jornais — o luto pelos mortos do último naufrágio, a
guerra inútil, a emigração dolorosa ainda lembrada desde os anos 60, hoje como
nunca, por isso as casas fechadas, entre valores tonais de cinza e negro, ainda
rótulos e restos de mercearias fechadas há meio século.
Quase tudo isto, com o avanço de
uma civilização tormentosa, feita de metrópoles neuróticas, onde o consumo se
transforma em caixas inventadas por Kafka e que guardam, expelem ou fazem
arrastar lixos inomináveis. Como o que sobra, na cal, em anúncios e gritos sem
sentido. Palavras eternas mas inúteis: ética, objectos, portas para
remodelação. Gruas e Gárgulas. Ministérios. Desastres. E sobre todo esse
reflexo de uma vida submersa em sinais e silêncios nocturnos, sob o alarme de
janelas iluminadas, soltas, altíssimas, o efeito das trinchas tapando tudo de
alto a baixo, manchas juntas, esboroadas pelo avanço na urgência.
José Brito pinta assim como se
desfizesse quadros anteriores, cobrindo-os em negro e sobre novos rascunhos em
papel, mensagens anónimas e marcas inalienáveis de certa degradação universal.
Tudo ele vai encobrindo, enquanto espreita pelas ranhuras que os pincéis e os
rolos marcam sobre os muros do nosso labirinto, através dos quais a esperança
reinventa iluminações ou esperanças — a notícia, a imagem insinuada e
emblemática.
Depois ele descansa quando fecha
a porta desse mundo testemunhado e levado ao segredo. Não descansa ao “sétimo
dia”, porque não é Deus, mas sim quando é preciso matar a insónia ou diluir o
cansaço. Depois viaja durante o amanhecer, pelos dias outonais, apanhando aqui
e além outros restos das horas dos outros, grafias em jornais, mais notícias e
rasuras, a sombra dos pássaros, o branco das gaivotas, o negro da noite ou do
instante em que o rolo cheio de tinta preta se deixa substituir pela trincha e
se imobiliza, escorrendo fios líquidos até ao limite, dele, do quadro e dos
nossos olhos desamparados.
Então é preciso descansar de novo
e olhar o riso ou a estranheza dos elementos pictóricos que dão corpo,
gravidade, talvez um sorriso meio escondido às coisas, na cada vez mais
previsível duração do mundo nocturno onde ainda nos recolhemos atrás do tempo
cósmico.
Rocha de Sousa/2014
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