Diálogos entre jornalismo, pintura e memória
Jornalismo, artes plásticas e memória. Nas manchetes diárias dos jornais, a intervenção pictórica. Sobre a efemeridade das notícias, a reflexão e a estética. Sobre os sentidos jornalísticos, o nascimento de outras formas de ver e sentir o mundo. Arte e notícia dialogam no instigante trabalho do artista plástico português José de Brito, que inaugura hoje, no Centro Cultural do Abolição, a mostra “Evocação da Memória”.
Para além da estética, o português também busca em seu trabalho a preservação e a perpetuação da língua portuguesa, revelando a identidade cultural que advém do idioma.Ele utiliza três jornais, em tamanho standard, para compor suas obras. Antes de pegar o pincel, seleciona temas da atualidade que lhe chamam a atenção nos jornais O Expresso, O Público e Diário de Notícias, todos d´além mar. Para a mostra no Abolição, o conflito no Oriente Médio, a guerra declarada por Bush, no Iraque, a omissão das Nações Unidas formam os assuntos escolhidos. Depois, a tinta acrílica ganha o papel jornal. Mas sem o exagero nas cores. “O mundo é preto e branco, daí porque uso principalmente as duas cores sobre as machetes”, diz José de Brito. “Muitas vezes, alguns artistas usam as cores como uma muleta; prefiro o preto e branco, que causam maior impacto”.
Seu processo de criação segue. Após a intervenção no papel jornal, a colagem e montagem no suporte - telas comuns, maiores que uma página de jornal. Entre os textos das notícias, algumas “janelas”, onde as palavras se perpetuam dentro da obra de arte, possibilitando ao público o resgate de trechos de textos. Além da pintura e da notícia, a busca do artista é, também, pela memória, já que a efemeridade do jornal não resiste ao dia posterior.
Segundo o curador Amândio Silva, a obra de José de Brito “é um convite permanente à intuição, à procura, à descoberta, estimuladas pelos mistérios de cores aparentemente soturnas, mas sempre plenas de harmonia”, define. “Suas telas não devem ser vistas apenas de passagem; a cada olhar aparece mais um pormenor, mais um elo de entendimento da sua vontade em abrir uma janela, em manter a esperança, apesar do mundo triste a que o artista e nós não podemos fugir”.Na definição do próprio artista, “Evocação da Memória”, faz parte de um projeto que leva em conta uma técnica e uma proposta que visa entender o desconcerto do mundo, gritando a nossa essência humana privada de cor pela monotonia e intoxicada pelas palavras gastas”. Técnica que se afirma na constante experimentação e busca de novos e diferentes resultados. “Procuro questionar a linguagem artística. Os meus quadros surgem a partir de páginas de jornal sobre as quais sobreponho a mancha de tinta negra. Coladas sobre a tela articulam-se de modo a rescrever uma nova narrativa”, completa Brito.
Formado pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, Brito começou sua carreira no figurativo. Aprendeu e estudou o estilo dos mestres do renascimento e do abstrato, para, em seguida, questionar os cânones da academia e partir para uma linguagem própria. É essa fase que mostra em “Evocação da Memória”.
No começo da fase, em 1999, Brito tapava o espaço e as próprias memórias colando papéis sobre papéis ainda visíveis, deslizando tintas de tonalidades variadas. O preto unificava tudo. Com a evolução dos trabalhos, outras cores foram aparecendo, sutis - o azul, o amarelo, o vermelho.
Natural de Lobão da Beira, uma aldeia portuguesa, é a primeira vez que José de Brito expõe em Fortaleza e a segunda no Brasil. Em seguida, a mostra segue para Belo Horizonte, São Paulo e Brasília, quando o artista volta para Lisboa, em Portugal. A exposição foi viabilizada através de uma parceria entre a Secretaria da Cultura do Estado e a Fundação Luso-Brasileira. A exposição “Evocação da Memória” fica aberta ao público até o dia 30 de abril, de segunda a sexta, das 8h às 18h. Já amanhã e no sábado, também no Centro Cultural do Abolição, no período da tarde e da noite, haverá um workshop com José de Brito e artistas locais.
André Marinho, in Diário do Nordeste, 2 de Abril de 2004
Sem comentários:
Enviar um comentário