sábado, 7 de junho de 2008

à beira do rio aprendemos a enlaçar as mãos

José Brito, técnica mista s/tela, 116x89 cm, 2005


EVOCAÇÃO DA MEMÓRIA

“C’est fou ce que le monde est beau”. Com esta frase emblemática, o filósofo Yves Michaud, professor na Universidade de Rouen, na França, inicia um de seus últimos livros ,“L’Art à l’état gazeux”, no qual disseca a arte contemporânea - video arte, instalações, etc - deixando claro que, nos tempos pós-utópicos em que vivemos, ela vem perdendo seu poder de transformar a vida, para se converter numa via de experiências e de sensações. E, em entrevista concedida após palestra em São Paulo, ele pergunta: “Como guardar o vestígio de experiências fugidias?”. Como um grande pensador que é, Michaud afirma menos que questiona, mas lança mais luz no túnel do que a que emana daqueles que se sentem, muitas vezes irresponsavelmente, donos da verdade.
Esta colocação nos acorre ao analisarmos a obra que o artista português José Brito vem realizando nos últimos anos, sobretudo aquelas incluídas na mostra “Evocações da Memória”, que ele mostrou em Portugal, em 2003, e no Brasil, em 2004. E isso porque o pensador francês, no mencionado “ensaio sobre o triunfo da estética”, fala ironicamente sobre a “beleza”, estranhando que num mundo tão preocupado com beleza física pessoal – aumentada pela cirurgia plástica, malhação, roupas de grife, maquiagem, piercings, tatuagem – pelos produtos industriais de design avançado e até pelas intervenções estéticas no ambiente, tornam-se cada vez mais raras as obras de arte propriamente ditas, ou seja, aquelas dotadas de qualidades mágicas, capazes de produzir “experiências estéticas únicas, elevadas e refinadas”. Michaud questiona o equivocado sistema de comunicações vigente nos dias atuais.
Penso que esta postura do filósofo encontra pontos de convergência na obra plástica de José Brito para o qual o mundo perdeu seu norte. Ele utiliza como matéria-prima de seu trabalho fragmentos de folhas de jornais com as notícias que veiculam, comentários, anúncios, ilustrações, colados sobre tela. Sobre essa massa de matéria fibrosa de origem vegetal coberta de linguagens, o artista aplica uma camada de tinta preta que a cobre em graus variados, objetivando criar outra forma de linguagem.
O jornal trata de pessoas, fatos e idéias, na tentativa de informar e formar seus leitores. A pintura de José Brito fala dele mesmo, de sua posição diante desse emaranhado de acontecimentos e conflitos que remetem freqüentemente ao caos. Com aguda sensibilidade, ele reorganiza a desordem numa série de obras coerentes, que possuem uma unidade estilística e conceitual incontestável na aparente diversidade formal, colorística e rítmica José Brito transforma o caos moderno num poema plástico. E o faz com conhecimento de seu ofício, com alto poder de elaboração e de invenção.
Este fascinante exercício de evocar o que já é evocação encontra paralelo, mutatis mutandis, na notável poesia “Pobre Velha Música!...”, de Fernando Pessoa, constituída apenas por doze versos, dos quais citamos os oito últimos: “Recordo outro ouvir-te./Não sei se te ouvi / Nessa minha infância / Que me lembra em ti./ Com que ânsia tão raiva / Quero aquele outrora! / E eu era feliz! Não sei: / Fui-o outrora agora.”.
José Brito é um artista sério, rigoroso, profundo, que não faz concessões, que coloca sua arte a serviço de um mundo melhor para todos.



Enock Sacramento
São Paulo, 2005

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