terça-feira, 3 de novembro de 2009

EXPOSIÇÃO DE PINTURA DE JOSÉ BRITO: FUNDACIÓ JOSEP NIEBLA




José Brito: imagens e palavras, noites

José Brito
imagens e palavras, noites
No domínio das artes visuais, da pintura ao cinema, a noite é muitas vezes tomada como elemento de significação, conteúdo expressivo pelo ângulo da paz ou no quadro das tragédias anunciadas. Embora eu não possa garantir, de um ponto de vista da representação no sentido intencional, que a obra de José Brito tenha alguma vez defendido propósitos ligados a esse conteúdo, a verdade é que o seu recente trabalho faz emergir da sombra profunda um clima assim, entre muros, palavras, colagens, espaço negro. Obra em parte pragmática, assente num eixo decisivo de coerência, ela faz-se em si como drama, mas o seu temperamento não decorre de algum teor romântico, comparando o lugar da cidade com brumas ou qualquer referência lunar: o lado fotográfico de certas fachadas, empenas, ruelas breves, perde toda a identidade devido ao anonimato dos ângulos e ao encerramento Kafkiano de todas as janelas. A comparação sistemática da sua última presença pública, com a produção mais remota, assegura-nos, além das manchas vermelhas escorrendo e de fracturas gestuais logo absorvidas pela noite, dá-nos conta de um percurso em abertura, de mudanças contidas, coerente com a anterior inspiração e método.

Os materiais
e a metodologia de pesquisa

José Brito nunca se bastou com aprendizagem linear dos materiais plásticos. Ele pertence, aliás, a uma geração em que a interiorização dos efeitos expressivos da pintura, por exemplo, já vinham carregados das coisas aparentemente resolvidas no século XX, época em que o homem se entreteve a desmontar as artes em geral, entre despojamentos bem perto do absurdo, no mais radical dos minimalismos, abstracção conjunturalmente ao poder no principio da decapitação dos dogmas, na destituição dos temas sacros. Passara a saber-se a pintura pela denegação dos seus panos ornamentais e pelo aconchego de estruturas elementares no atributo da cor, vínculo essencial desse corpo emagrecido ou purificado.
É verdade que José Brito desenvolve trabalhos de pesquisa, aprofundando o discurso inerente às artes plásticas e no sentido de lhes conferir vários atributos teóricos, sustentação científica, sem perder de vista, em termos mais específicos, o melhor entendimento possível dos pólos de significação no campo das artes visuais. Na base de recolhas, para um espólio repartido e nomeado, estão naturalmente as tintas, acrílicas sobretudo, e um vasto campo de recortes de comunicação gráfica, textos publicados, fragmentos de um mundo contraditório, amputação de textos, fotografias sobrando de jornais e revistas, ou, elas mesmas, feitas pelo autor e sujeitas a maior conteúdo de pesquisa. São materiais dúcteis e vulneráveis, susceptíveis de rasgões, cortes, entre fins justapostos, votados, por eles mesmos, a uma integração pictórica que não os destrói de todo, antes os conjuga com outros, na deriva dos sinais somados ao testemunho e à significação do mundo.
As colas vão basear diversas fixações, sob a tinta que depois recobre a tela de coesão, entre ilhéus ou continentes onde é possível descortinar restos de imagens fotográficas, títulos, rasuras em jornais, revistas, cartazes, outdoors, labirinto completado por contextos urbanos, Rauschenberg ou Warhol suspeitados, outras convocações diferentes mas de súbito, entre visitas, sobrando ao cair das noites, a tinta acrílica, preto, poucas nuances, envolvendo todo o espólio de coisas geminadas ou configuradas pela representação publicada ou retidas assim na fixidez que emerge da amarração com parcimónia, entre gestos soltos mas curtos, gravitando texturas invisíveis a um primeiro olhar.

Imagem e palavra, noites
Coleccionar os materiais atrás referidos corresponde a viagem criadora e naturalmente marcada por escolhas – como se o autor, quiçá o contemplador, navegasse num rio onde diversos ancoradouros permitissem pausas de descanso e o levantamento de espólios locais, fora de qualquer comunidade. As escolhas que José Brito faz, nesse sentido, são em torno da palavra e da imagem, como já vimos. A palavra é arrastada nos recortes de jornais e revistas, pode dar notícia do quotidiano do mundo, dos conflitos, das crises, da história, aliás a par de outros testemunhos e grande quantidade de factos banais, gostos do não gosto, imagens paralelas que dilatam o visível e o canalizam para os domínios da arte e do consumo. A carga de experiências deste tipo costuma alargar-se, qualificar-se, fornecendo a quem as vai fruindo caminhos fecundos de criatividade, assim o disse a Picasso, num dos seus encontros, o pintor Juan Gris.
Arrumadas as fontes, manipuladas através de geminações poéticas, entre imagens de textos de origem portuguesa, vistos de forma aleatória ou capazes de abrir espaços de questionação, o registo fotográfico pode adiantar-se ou recuar numa profundidade ilusória, perdendo e destacando-se naquela pintura feita sobretudo de valores de negro, aberta aqui e além por velaturas sucintas, véus de janelas batidas pela brisa, superfícies maiores, desfocando cenografias, angulações urbanas que se sabe o que encobrem, o tempo certamente, silêncios sem personagens, abandonos da vida, fracturas, rachas, escritas impulsivas e logo lavadas sem apagamento, a noite sim, porque é difícil passar por estes organismos planos e percepcioná-los como em pleno dia. Quando o autor nos fala em manchas de tinta preta, tinta-da-china e acrílica, ambas diluídas em nome de uma transparência que permite calcular o visível a montante, viajar em plongé (a lembrar o belo travelling de Tarkovski em Stalker) e chegar longe na noite ao promontório onde se descansa e se houve o pingar da água, talvez o marulhar de vozes de outrora atrás das janelas fechadas, casas de tijolos disfarçados com argamassa e tinta branca. Vemos assim, para lá do jogo estético, de muitas anotações do sensível, coisas passando devagar sob os nossos olhos, a translucidez que nos avisam de objectos submersos, memória e vivência construídas sob imperativos da razão (também feita de emoções).
Como observador desta obra, e do muito que ela esconde de percepção viva, continuo a pensar que toda a investigação de José Brito, até pela estrutura de travejamentos estáticos pressentidos na sombra, fala-nos de cidades perdidas, longínquas, de restos actuais e desumanizados, numa escorrência de cartazes sujos e textos absurdos, imagens desfocadas de ontem ou do futuro, sempre sob o grande manto da noite, apesar de claridades que parecem mostrar mais decadência do que refundação.

José Brito,
Fundació Josep Niebla, Casavells - Girona/Espanha.
Entre 19 de Setembro e 18 de Outubro. Horário entre as 10 e as 19 horas.

Rocha de Sousa,
in JL, Jornal de Letras, Artes e Ideias,
Nº 1018, de 07 a 20 de Outubro de 2009, pág. 323 e 33.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Voz


José Brito, técnica mista s/tela, 46x55 cm, 2009

Chamamento

José Brito, técnica mista s/tela, 130 x 97 cm, 2009

Afinidade

José Brito, técnica mista s/tela, 46x55 cm, 2009
José Brito, técnica mista s/tela, 46x55 cm, 2009
José Brito, técnica mista s/tela, 46x55 cm, 2008
José Brito, técnica mista s/tela, 46x55 cm, 2009
José Brito, técnica mista s/tela, 46x55 cm, 2009

terça-feira, 17 de março de 2009

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

José de Brito


“Trago no Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.”
Fernando Pessoa//Obra poética.
“Ficções do Interlúdio”, Poemas Completos de Alberto Caeiro


José de Brito, que nasceu em 1958, é licenciado em Belas Artes pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa e expõe colectivamente desde 1994 e individualmente desde 1996, tem vindo a desenvolver um estilo muito pessoal que Rocha de Sousa descreve: “O artista reveste a própria tela por papel de jornal, fragmentos rasgados onde os títulos sobram para leituras desarticuladas. Papeis dessa natureza ou de outra, numa descontinuidade dentro da continuidade, enformam a matéria de base da pintura, recebendo tintas com algum valor lumínico. Este trabalho, desligado das representações típicas da observação espacial da realidade, é sucessivamente encorpado por matérias e materiais em redes e aparentes escorrimentos de tinta negra (…) A palavra escrita permanece identificável, fascinando o olhar, despertando afectos - ou depois, quando se torna ilegível, guardando intacto o rumor da voz. A forma plástica de José de Brito é, assim, macerada e dramática, abstracta e algo expressionista, sóbria de cores e tumultuante nos negros (…), a abstracção densa entre “frestas, pintura em si, parede de memórias recentes e milenárias. Não é uma pintura da luz, é antes a emergência da noite.”

António Rodrigues em apresentação de exposição de sucesso em Itália, em 2001, pronuncia-se deste modo sobre o trabalho do artista: “O espectáculo da comunicação da contemporânea é percepcionado por José de Brito como um caos de imagens e de palavras, a partir do qual organiza a sua pintura (…) O gesto do pintor estabelece uma relação de tensão entre a acção obscurecedora da matéria negra e os fragmentos luminosos de cores e de palavras que aquele dá a ver. Transitórios e moventes são estas manchas negras. São a selvajaria, a liberdade, sobre as ideias feitas e os mecanismos do condicionalismo cultural.”

Uma obra original e de plena conquista de um estilo, perceptível no pós-Roland Barthes das Mitologias Contemporâneas e também no pós-Tápies da imagem da pintura sobre o muro por este inaugurada. A pintura de José Brito une o social e o imaginário, um dueto cujo sentido nos permite aprofundar. Comunicação global (titulo da sua exposição em Itália), sim, mas comunicação entre os vários estratos do psiquismo e da natureza profunda do ser e do mundo: o consciente e o inconsciente, o dia e a noite, a vida e a morte, o espírito e a matéria.

Fragmentos de um real simultaneamente sonhado afloram ao consciente trazidos pela noite da matéria plástica, caos vivo, reflexo de uma insondável profundidade. Noite pujante, maternal substância de enlaces e transfigurações de que a tela é receptáculo. Desfaz-se em mim ecos de um balbuciar antigo o ruído de uma realidade hostil que a imagem cristaliza no seu estilhaçar nocturno e cintilante.

A consciência liberta das evidências da representação, dos conceitos, faz-nos evocar as reflexões de Maria Zambrano acerca do que considera o conteúdo anímico da vida:”é indiscernível, por não ser representativo. É meramente sensível, fugidio e semitransparente (…) numa intimidade com toda a vida e não apenas com a vida humana, despertar verdadeiramente para a vida humana, nascimento sem violência, como parece desprender-se a aurora do leito aquoso do horizonte com a sua luz”.

A noite é o berço das palavras, de uma miríade de discursos inacabados, escritas de um anseio de luz e completude. Berço de agressões, de gestos amorosos, de anseios, de desejos que explodem antes de ser vida ou que a vida devolve ao seu magma inicial. Berço, morada última prestes a renascer das suas cinzas em reverberações de uma cor que timidamente amanhece. Ouro oculto, afundado em húmidas trevas, ouro e fogo sensual crepitando fantasias longínquas. Água, mas uma água que ainda não foi soletrada e aguarda a fonte de um olhar capaz de a fazer reflorir.

O universo, as formas do seu mistério, as suas criaturas, os seus silêncios diluem-se nesta pintura e também os ritmos, os sons, os íntimos movimentos da cidade dos homens, crepúsculo de uma civilização que se deixa apreender nos breves interstícios da sua alma, a escrita. A escrita é a alma do mundo, parece dizer esta obra que vai tecendo laboriosamente um vocabulário de signos ilegíveis e presentes, como a realidade que nos inspira. Enigmas de uma realidade que é o palco das estranhas visitações. A das palavras em primeiro lugar, palavras portadoras de morte e de vida, coração desencantado e horizonte de esperança e de magia.

Canto de avassalada solidão, a da condição humana engolida no caos e no absurdo de uma vertiginosa incomunicabilidade no seio mesmo da Babel contemporânea. A par da comunicação sonhada com o outro, com o cosmos, com o divino. Noite do vazio e da ausência no pulular de presenças e de vozes sem sentido, poço de uma inquietação milenar devolvida ao instante e frágil cintilação de um elã sem nome, colorido ímpeto para a luz, vocação para o nascimento adormecido no âmago das trevas. Elogio de uma noite que é portadora de todas as frustrações e de todos os milagres.

Pintura de paradoxos e de contradições, de fragmentos e de ruínas, que nos permite visionar, como toda a arte autêntica, além da sua fragmentação e das suas trevas aparentes, uma perdida unidade, um intemporal cântico, íntima e feliz harmonia.

Maria João Fernandes
In Caligrafias a Nascente do Nome
Edição da Fundação Portuguesa das Comunicações, Lisboa, 2008
In Jornal de Letras, 23 de Julho de 2003. pág. 35

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1/ Zambrano, Maria, “O Sonho sem Forma”, in Os Sonhos e o Tempo, Relógio d´Água Editores, Lisboa, 1994, pp. 84, 85 e 86.