terça-feira, 13 de janeiro de 2009

José de Brito


“Trago no Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.”
Fernando Pessoa//Obra poética.
“Ficções do Interlúdio”, Poemas Completos de Alberto Caeiro


José de Brito, que nasceu em 1958, é licenciado em Belas Artes pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa e expõe colectivamente desde 1994 e individualmente desde 1996, tem vindo a desenvolver um estilo muito pessoal que Rocha de Sousa descreve: “O artista reveste a própria tela por papel de jornal, fragmentos rasgados onde os títulos sobram para leituras desarticuladas. Papeis dessa natureza ou de outra, numa descontinuidade dentro da continuidade, enformam a matéria de base da pintura, recebendo tintas com algum valor lumínico. Este trabalho, desligado das representações típicas da observação espacial da realidade, é sucessivamente encorpado por matérias e materiais em redes e aparentes escorrimentos de tinta negra (…) A palavra escrita permanece identificável, fascinando o olhar, despertando afectos - ou depois, quando se torna ilegível, guardando intacto o rumor da voz. A forma plástica de José de Brito é, assim, macerada e dramática, abstracta e algo expressionista, sóbria de cores e tumultuante nos negros (…), a abstracção densa entre “frestas, pintura em si, parede de memórias recentes e milenárias. Não é uma pintura da luz, é antes a emergência da noite.”

António Rodrigues em apresentação de exposição de sucesso em Itália, em 2001, pronuncia-se deste modo sobre o trabalho do artista: “O espectáculo da comunicação da contemporânea é percepcionado por José de Brito como um caos de imagens e de palavras, a partir do qual organiza a sua pintura (…) O gesto do pintor estabelece uma relação de tensão entre a acção obscurecedora da matéria negra e os fragmentos luminosos de cores e de palavras que aquele dá a ver. Transitórios e moventes são estas manchas negras. São a selvajaria, a liberdade, sobre as ideias feitas e os mecanismos do condicionalismo cultural.”

Uma obra original e de plena conquista de um estilo, perceptível no pós-Roland Barthes das Mitologias Contemporâneas e também no pós-Tápies da imagem da pintura sobre o muro por este inaugurada. A pintura de José Brito une o social e o imaginário, um dueto cujo sentido nos permite aprofundar. Comunicação global (titulo da sua exposição em Itália), sim, mas comunicação entre os vários estratos do psiquismo e da natureza profunda do ser e do mundo: o consciente e o inconsciente, o dia e a noite, a vida e a morte, o espírito e a matéria.

Fragmentos de um real simultaneamente sonhado afloram ao consciente trazidos pela noite da matéria plástica, caos vivo, reflexo de uma insondável profundidade. Noite pujante, maternal substância de enlaces e transfigurações de que a tela é receptáculo. Desfaz-se em mim ecos de um balbuciar antigo o ruído de uma realidade hostil que a imagem cristaliza no seu estilhaçar nocturno e cintilante.

A consciência liberta das evidências da representação, dos conceitos, faz-nos evocar as reflexões de Maria Zambrano acerca do que considera o conteúdo anímico da vida:”é indiscernível, por não ser representativo. É meramente sensível, fugidio e semitransparente (…) numa intimidade com toda a vida e não apenas com a vida humana, despertar verdadeiramente para a vida humana, nascimento sem violência, como parece desprender-se a aurora do leito aquoso do horizonte com a sua luz”.

A noite é o berço das palavras, de uma miríade de discursos inacabados, escritas de um anseio de luz e completude. Berço de agressões, de gestos amorosos, de anseios, de desejos que explodem antes de ser vida ou que a vida devolve ao seu magma inicial. Berço, morada última prestes a renascer das suas cinzas em reverberações de uma cor que timidamente amanhece. Ouro oculto, afundado em húmidas trevas, ouro e fogo sensual crepitando fantasias longínquas. Água, mas uma água que ainda não foi soletrada e aguarda a fonte de um olhar capaz de a fazer reflorir.

O universo, as formas do seu mistério, as suas criaturas, os seus silêncios diluem-se nesta pintura e também os ritmos, os sons, os íntimos movimentos da cidade dos homens, crepúsculo de uma civilização que se deixa apreender nos breves interstícios da sua alma, a escrita. A escrita é a alma do mundo, parece dizer esta obra que vai tecendo laboriosamente um vocabulário de signos ilegíveis e presentes, como a realidade que nos inspira. Enigmas de uma realidade que é o palco das estranhas visitações. A das palavras em primeiro lugar, palavras portadoras de morte e de vida, coração desencantado e horizonte de esperança e de magia.

Canto de avassalada solidão, a da condição humana engolida no caos e no absurdo de uma vertiginosa incomunicabilidade no seio mesmo da Babel contemporânea. A par da comunicação sonhada com o outro, com o cosmos, com o divino. Noite do vazio e da ausência no pulular de presenças e de vozes sem sentido, poço de uma inquietação milenar devolvida ao instante e frágil cintilação de um elã sem nome, colorido ímpeto para a luz, vocação para o nascimento adormecido no âmago das trevas. Elogio de uma noite que é portadora de todas as frustrações e de todos os milagres.

Pintura de paradoxos e de contradições, de fragmentos e de ruínas, que nos permite visionar, como toda a arte autêntica, além da sua fragmentação e das suas trevas aparentes, uma perdida unidade, um intemporal cântico, íntima e feliz harmonia.

Maria João Fernandes
In Caligrafias a Nascente do Nome
Edição da Fundação Portuguesa das Comunicações, Lisboa, 2008
In Jornal de Letras, 23 de Julho de 2003. pág. 35

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1/ Zambrano, Maria, “O Sonho sem Forma”, in Os Sonhos e o Tempo, Relógio d´Água Editores, Lisboa, 1994, pp. 84, 85 e 86.