quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Valter Hugo Mãe

Ver no escuro
A obra noturna de José Brito é o espirito do mundo dos homens. Uma radiografia à alma múltipla da humanidade. Digo noturna porque é feita desse negro cobrindo as notícias dos dias, como a oclusão de todas as informações, de todo o saber, o que parece também suscitar a necessidade de reabilitar o mundo a cada madrugada, o que solicita permitir o passado mas urgir no presente e para o futuro. E digo noturna porque os dias vão todos às noites. Quando vemos a obra humana nas telas do José Brito estamos convocados para pensar sobre o declínio, um afundamento de todas as matérias na fantasmagoria olvidante da escuridão. Mas é verdade que toda a escuridão pressupõe a luz e, por isso, a regeneração.
O que me instiga passa pela sugestão de uma truculenta sujeição da matéria à ausência de luz. O preto, como ausência de cor mas também como cor demasiada, derramada sobre as texturas e suas imagens igual a uma malha que aprisiona. Julgamos ver o gradeamento, só aparentemente casual, de um cárcere. A pintura prende, esconde, subjuga. O que somos está sob a opacidade definitiva daquela tinta. Esperar que dissipe, como assim se levantam as noites, é uma falácia. O que José Brito faz problematiza a regeneração, mas a sua arte é peremptória e estrutural, quando age passa perto da punição.
Pela truculência, há um lado de terra das telas de José Brito. As suas imagens são sempre lugares e o que se vê ganha reminiscências de edifícios e apontamentos da sua engenharia complexa. Os jornais de que tantas vezes parte usando como elemento fundamental, servem de mapa estranho, como se víssemos as coisas do alto, já transformadas numa geometria simplificada, em que se acentuam contornos e diferenças bruscas, e se mesmizam os infinitos pormenores. O derrame impiedoso da tinta negra cria o efeito de um corpo gigante que se sobrepõe ao mapa e, por conseguinte, às construções sugeridas. Punindo, efetivamente, o mundo incapaz de mostrar meticulosamente o seu susto, o susto é a promessa de esquecimento. Uma anulação completa dos que aprenderam, sentiram, sonharam, ganharam ou perderam alguma coisa.
            O que muitas vezes acontece, desde logo pelo à deriva com que a cor é aposta, passa pela criação de um estranho efeito caligráfico. De gesto largo, efetivamente com ar de gigante, não deixa de criar também a ideia de que algo se escreve. A tela é uma inusitada folha em que a linguagem inventa os seus próprios signos. Não poderemos verbalizar inequivocamente, mas podemos sempre propor uma leitura. Perto dos muros de protesto, aludindo às camadas de contínuos cartazes colados para anúncio de todos os assuntos, o trabalho de José Brito discute o sujo. O que pode ser equilibrado plasticamente, ou plasticidade do sujo, que é o mesmo que dizer do acaso.
A sugestão de casualidade é uma pesquisa acerca dos limites da arte. Importa saber que diferença existe entre a imagem intencional e aquela que comparece pela espontânea atuação das pessoas imbuídas de preocupações externas à arte. Num certo sentido, no que respeita à intervenção nos muros públicos, a distribuição de cartazes ou grafites com todo o tipo de incursão passa sobretudo por uma ética do espaço público cuja estética será secundarizada ou absolutamente menosprezada. Para o trabalho de uma artista plástico, o que sobressai é a necessidade de dotar uma ética de um propósito estético. Ou seja, o sujo não pode ser banal. A sua utilização, na tela sempre tão sacralizadora, vai implicar uma edição, um corte, uma ficção que não permite mais que estejamos a falar dos muros reais mas de um processo mnemónico e de reconhecimento por imitação ou semelhança.
A questão da memória, nestes complexos mapas não se obstruem, é fulcral. Se a arte deve esclarecer ou simplesmente enunciar é uma das questões. O que José Brito faz não esclarece propriamente. Ele enuncia as questões e, típico do que se vê no escuro, cada um lida com os fantasmas que tiver. Em último caso, a arte só pode ser assim.
Convivo há bastantes anos com uma tela de José Brito. Um trabalho criado em homenagem às vítimas das Torres Gémeas em que se pressentem duas colunas simétricas. A tinta negra cria um colete de forças, uma espessa rede de ferro que encerra a imagem para lá do que possamos passar. Observando a partir dos espaços livres, somos exteriores ao nosso próprio mundo. Assistimos impotentes. Não somos convocados à história da humanidade. Apenas passamos ao lado, como testemunhas desimportantes para as suas próprias vidas. O caso das Torres Gémeas é perfeito para o pensamento vigilante de José Brito. Há uma conspiração subjacente à simples ideia de sociedade. Desmistificá-la é o fito dos lúcidos. Os artistas não são avestruzes inexplicáveis. Por vezes, os artistas são clarilíneos imersos num universo de entropia. Assim o José Brito. Com a sua escuridão profunda, enfim, faz luz.

Valter Hugo Mãe

Jornal de Letras, Artes e Ideias, ano XXXIV, Número 1158 – De 18 de fevereiro a 3 de março de 2015, página 34

sábado, 21 de fevereiro de 2015