quinta-feira, 15 de dezembro de 2022
Entrevista: 2011
Canal de Arte Contemporânea - Marcio de Oliveira Fonseca
Você
poderia falar algo de sua vida pessoal?
Ex.: local e data do nascimento,
profissão dos pais, escolas frequentadas, universidade, eventuais trabalhos.
Nasci a 6 de Setembro de 1958, em Lobão
da Beira, Tondela, Portugal.
Filho de gente humilde, com o 3.º ano de
escolaridade.
A minha mãe repartia as tarefas da casa
com a vida do campo, o meu pai era operário da construção civil.
Na escola da aldeia estudei até ao 6.º
ano de escolaridade e partir daí encerravam-se todas as ambições académicas das
famílias com mais dificuldades. Em Tondela, a
Viseu ficava a uma distância superior a
Todos aqueles que nasciam no interior do
país, fora dos grandes centros urbanos, estavam condenados a ser força bruta de
trabalho. Tínhamos no campo a oportunidade de trabalho, havia também uma
pequena indústria ou então restava-nos a emigração.
A partir dos 12 anos comecei a trabalhar
no campo e a partir dos 14 anos comecei a trabalhar como operário da construção
civil.
O legítimo desejo de um trabalho mais
consentâneo com as minhas ambições pessoais, sociais e afectivas levam-me até à
capital.
Aos vinte anos, fixo-me em Lisboa e vou
trabalhar para a Câmara Municipal como cantoneiro de Limpeza.
Vou varrer as ruas da cidade e particularmente
as ruas que contornam o Liceu Gil Vicente onde ingressei como aluno em regime
de horário nocturno. Uma das minhas professoras desde logo me começou por
encorajar a seguir o caminho das artes. No ano seguinte, ela mesmo, tratou da
minha transferência para a extraordinária e admirável Escola Secundária
Artística António Arroio. Dali sigo para a Faculdade de Belas-Artes de Lisboa
onde me licenciei em artes plásticas/pintura. Mais tarde realizei o mestrado em
História da Arte na Universidade Lusíada.
Quando
você notou o seu interesse pela arte? Como sua família reagiu?
Acredito que não fui eu que tive a
percepção de que tinha algum talento para as artes mas sim os meus estimados professores.
Mesmo após a minha entrada para a
António Arroio eu apenas pensava trabalhar num escritório, ter um emprego e um
vencimento seguro no final de mês. Entretanto, de forma intensa e
apaixonada, comecei a interessar-me por arte, mas na qualidade de fruídor,
nunca na condição de criador. Na fase final do curso, no 12º ano, comecei a copiar obras de Amadeo de Sousa Cardoso e Vieira da Silva. Trabalhos que destruí e hoje me
arrependo. Ambos me influenciaram bastante e creio que essa influência ainda
hoje é visível no meu trabalho. Convém salientar que ainda guardo, ou melhor a
minha mãe, trabalhos que fiz durante o 5º e 6º ano de escolaridade. São
trabalhos que de facto revelam grande expressividade plástica e sentido
estético.
Quando fiz a candidatura à universidade
meu pai aconselhou-me por um curso que, segundo ele, possibilitasse um futuro
mais sólido: arquitectura, engenharia...
Mas, agora todo o meu universo era pictórico, apenas pensava em pintura e ser pintor. O trabalho que hoje desenvolvo iniciou-se neste período, mais concretamente em 1987.
Qual
foi sua formação artística?
Tenho como formação artística: o Curso
de Artes Técnicas do Fogo da Escola Secundária Artística António Arroio,
Numa primeira fase são essencialmente
pintores portugueses: Amadeo de Sousa Cardoso e Helena Vieira da Silva.
Depois veio o contacto com os mestres
cubistas e sobretudo aqueles ligados à colagem: Picasso, Braque e Juan Gris. Em
Outros mestres que influenciaram a minha
pintura: Rembrandt, Velásquez, Joan Miró, Kurt Schwitters, Mark Rothko, Alberto
Burri, Manolo Millares, Andy Warhol, Robert Rauschenberg, Anselm Kiefer, …
A poesia de Fernando Pessoa é também uma
das minhas grandes fontes de inspiração e libertação.
A minha obra está intimamente associada
à fragmentação do eu em Pessoa a qual
permite conciliar o pensar e o sentir. Organizo a fragmentação num todo que é a
pintura.
Faço sempre questão de pintar sobre
jornais em língua portuguesa. O português representa um património cultural
imaterial que é importante salvaguardar. Como dizia Fernando Pessoa: “Minha
pátria é a língua portuguesa”.
Que
comentários você faria sobre sua obra?
Faço uso das páginas dos jornais (apropriação) e da colagem (manipulação e intervenção
em recortes de imprensa), exploro esta técnica artística tanto para re/leitura
como para representação do mundo contemporâneo.
Aproprio-me das páginas dos jornais e intervenho
sobre as mesmas estendendo
(com um trapo) manchas de tinta negra (tinha da china com tinta acrílica preta)
bastante líquida de modo a possibilitar um elevado grau de transparência, isto
é, permitindo ao observador uma re/leitura, ainda que parcial, dos textos.
Estas
folhas de imprensa (sempre jornais portugueses visando a defesa da língua
portuguesa como património cultural da humanidade a preservar) quando colados
sobre a tela, articulam-se de modo a reescrever uma nova narrativa e
constituindo um jogo estético, quadro de anotações e um sem fim de ideias e
sensações. Uma torrente que impele a memória e a vivência construída de maneira
impulsiva e directa.
Os
jornais são também uma imagem da infância, o suporte que trazia a notícia mas
que, simultaneamente, servia, nas casas mais modestas, como elemento decorativo
dos louceiros das cozinhas negras da fuligem das lareiras.
Tal
abordagem prática passou a suscitar inumeráveis questões teóricas acerca da
composição gráfica/imagem (mancha gráfica) enquanto registo e forma de
expressão; da origem e desenvolvimento histórico da técnica do recorte e da
colagem; da colagem na história da arte moderna e contemporânea; do uso de
imagens fotográficas pela comunicação visual e pela publicidade e, particularmente,
acerca dos sentidos que uma mensagem visual pode produzir, entre outras.
Esta
pesquisa, iniciada em 1987, ainda como aluno da Escola Secundária Artística
António Arroio, desenvolveu-se inicialmente em forma de estudos exploratórios
tendo sofrido, ao longo de todo este tempo, um percurso processual de visível
sequência no plano das poéticas contemporâneas.
Com esta
pesquisa pretendo aprofundar o estudo da colagem para assim compreender o
processo de reutilização dos resíduos/folhas de jornal impressos e do registo
fotográfico transformado numa nova superfície: não é a reunião dos papéis
colados que faz a colagem, mas é o encontro de imagens que nos dá a colagem num
âmbito mais sensível da expressão dinâmica e da visão activa.
Por
outro lado, pretendo ampliar o universo da pesquisa desenvolvida até agora,
examinando também as especificidades que a imagem passou a ter, ao ser
enormemente apropriada e manipulada nos e pelos meios electrónicos disponíveis
na actualidade.
O
objectivo geral passa por aprofundar e desenvolver a minha pesquisa,
conferindo-lhe maior fundamentação teórica, atribuindo-lhe contornos
científicos definidos, vinculando-a mais directamente à linha de pesquisa sobre
a qual tenho vindo a desenvolver todo o trabalho em torno da pintura/colagem.
Sob o
ponto de vista dos objectivos específicos pretendo compreender em profundidade
os significados das mensagens visuais, realizar pesquisa bibliográfica pertinente
e desenvolver e estruturar um método didáctico de apropriação e intervenção em
imagens.
Para
isso ambiciono efectuar um estudo e investigação da colagem e o seu lugar na
História da Arte. Estudo/abordagem da obra de alguns artistas que utilizaram a
colagem ao longo da História da Arte (Picasso, Braque, Gris, Schwitters, Rauschenberg,
Warhol, Tapiès etc.) e saber o papel da imagem fotográfica impressa na
contemporaneidade. (A imagem fotográfica veiculada em suportes fixos: Jornais,
Revistas, cartazes, out-doors, etc.)
Todas as exposições foram, para mim,
muito importantes embora a última é sempre aquela que se reveste de maior
sentido. Já não expunha, individualmente, no Brasil desde 2004. Tive várias
oportunidades mas sempre fui adiando…
Mas quero dizer-lhe que amo o Brasil,
acredito neste jovem país e gostaria muito de viver e trabalhar aqui de forma
mais efectiva.
Há cerca de cem anos pai de minha mãe
casou, no Rio de Janeiro, com uma senhora de origem portuguesa indo viver para New
York. Meus tios mais velhos nasceram naquela encantadora cidade. A família
regressou a Portugal pelo que se perdeu a relação com os EUA bem como com o Rio
de Janeiro/Brasil.
Lembro a minha primeira exposição
individual, em Tondela, que por questões afectivas fiz questão que fosse nesta
cidade.
Com a exposição na Galeria Cândido
Portinari, em Roma, dei início a um processo de projecção além fronteiras.
Depois a minha exposição na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife. Mais tarde a
exposição no Palácio da Abolição em Fortaleza; a exposição no Palácio das Artes
Como grande admirador da arte e cultura
espanhola, a exposição na Fundació Niebla, próximo de Barcelona, foi também muito
significativa para mim. É a casa do grande pintor catalão Josep Niebla e,
sobretudo, um grande amigo, um homem com uma enorme dimensão humana.
Paula
Rego é o grande nome da arte contemporânea de Portugal. Na Bienal de São Paulo
temos Carlos Bunga, Pedro Costa e Pedro Barateiro. Como está a arte em seu país
em relação a outros países? Que outros nomes se destacam?
Sim, hoje é unânime que entre nós,
portugueses, Paula Rego é a grande referência na arte contemporânea embora seja
importante lembrar que ela reside
Existe hoje em Portugal um leque de imensa
qualidade e diversidade de grandes artistas plásticos com obra reconhecida além
fronteiras. Entre tantos e sem querer ferir sensibilidades destaco alguns: Julião
Sarmento, Jorge Martins, David Almeida, Pedro Cabrita Reis, Joana Vasconcelos,
Ângela Ferreira, José Pedro Croft, Rui Chafes, João Maria Gusmão e Pedro Paiva,
Francisco Tropa, André Cepeda, António Gonçalves …
Há
algum auxílio do governo no desenvolvimento dos artistas?
Existem alguns organismos, ligados ao
estado, cujo seu papel deveria ser o de apoiar os artistas portugueses porém, a
obtenção desses apoios torna-se complexa sendo para isso necessário algum
engajamento, estar integrado na rede político-social... Quem não faz parte da
máquina obviamente fica fora do circuito.
Existe a Fundação Calouste Gulbenkian que
trouxe a Portugal um enorme arejamento e apoio à cultura. Acontece que o
Serviço de Belas-Artes da Fundação Calouste Gulbenkian vai ser extinto no final
de 2010 no âmbito de uma reestruturação interna. É o fim de um serviço criado
há 50 anos para apoiar as artes plásticas, visuais e performativas. Em
Creio que o estado tem o dever e a
responsabilidade de apoiar a cultura do seu país embora os artistas também não devem
ficar de braços cruzados à espera…
Você
recentemente fez uma bela exposição
Sim, acabo de expor no simpático Espaço
Cultural do Centro Administrativo da Vallourec & Mannesmann,
A minha percepção sobre a arte no Brasil
é que ela tem uma enorme vitalidade. Apresenta-se sob as diferentes tendências
e formatos que reflectem a sua diversidade e liberdade criativa.
O Brasil possui, para além de um relevante
e atractivo mercado de arte, uma importante e qualitativa rede de Museus,
Institutos e Galerias de Arte que promovem e incentivam os artistas a
apresentarem os seus arrojados projectos de revalorização e afirmação da arte.
A Bienal de São Paulo é encarada, aos olhos dos artistas de diferentes
latitudes, como um espaço de afirmação e projecção global.
É esta singularidade que hoje leva os
artistas estrangeiros a construir pontes e a estabelecer mecanismos de
comunicação e trocas culturais com o mercado de arte brasileiro.
Quais são seus planos para o futuro?
Embora não tendo muitos planos para o
futuro gostaria de expor mais assiduamente no Brasil e, se possível, ter
atelier neste jovem pais carregado de enorme potencial.
Trabalho na Câmara Municipal de Lisboa como
técnico superior de artes plásticas, pelo que fica muito pouco tempo para mim
e, particularmente, para a minha família que amo acima de tudo.
Deste modo pinto à noite e ao final de
semana.
Faço alguma pesquisa sobre arte, visito
sempre que posso alguns museus e galerias de arte. Viajo muito pouco a não ser
em trabalho.
Aos domingos de manhã gosto de praticar
desporto para me manter em forma física.
Sempre que posso adoro estar, conversar
e tomar um café com os meus amigos.
terça-feira, 13 de dezembro de 2022
segunda-feira, 5 de dezembro de 2022
MEMÓRIA NOCTURNA DO MUNDO
Este não é o mundo que eu
conheço, ou conheci, mas alguma parte nocturna dele. É porventura um mundo
encoberto, que se tornou parietal e que os morcegos pintaram primeiro com
colagens e velhos jornais de parede. Eles ou alguém por eles, gente do mundo
urbano mal iluminado, cola escorrendo entre muros de madeira, portas, betão
envelhecido. Os jornais voando das mãos para o empedrado das ruas e mais tarde,
em colunas de história, pegados nas paredes poeirentas. Grandes trinchas de
pintores murais, gente do biscate na rua ou dentro das casas húmidas, assim
chegam para arranjar bolores, farelos provocados pelos invernos mais duros,
frinchas, fracturas, painéis internos onde sobram, no protoplasma da sua
transitória ausência, centenas de silhuetas de pequenos e médios quadros,
retratos, memória de infâncias ou paisagens depois delas.
A história também envelhece, por
dentro e por fora dos espaços urbanos, sobretudo quando fica resumida aos
títulos sem gramática dos jornais — o luto pelos mortos do último naufrágio, a
guerra inútil, a emigração dolorosa ainda lembrada desde os anos 60, hoje como
nunca, por isso as casas fechadas, entre valores tonais de cinza e negro, ainda
rótulos e restos de mercearias fechadas há meio século.
Quase tudo isto, com o avanço de
uma civilização tormentosa, feita de metrópoles neuróticas, onde o consumo se
transforma em caixas inventadas por Kafka e que guardam, expelem ou fazem
arrastar lixos inomináveis. Como o que sobra, na cal, em anúncios e gritos sem
sentido. Palavras eternas mas inúteis: ética, objectos, portas para
remodelação. Gruas e Gárgulas. Ministérios. Desastres. E sobre todo esse
reflexo de uma vida submersa em sinais e silêncios nocturnos, sob o alarme de
janelas iluminadas, soltas, altíssimas, o efeito das trinchas tapando tudo de
alto a baixo, manchas juntas, esboroadas pelo avanço na urgência.
José Brito pinta assim como se
desfizesse quadros anteriores, cobrindo-os em negro e sobre novos rascunhos em
papel, mensagens anónimas e marcas inalienáveis de certa degradação universal.
Tudo ele vai encobrindo, enquanto espreita pelas ranhuras que os pincéis e os
rolos marcam sobre os muros do nosso labirinto, através dos quais a esperança
reinventa iluminações ou esperanças — a notícia, a imagem insinuada e
emblemática.
Depois ele descansa quando fecha
a porta desse mundo testemunhado e levado ao segredo. Não descansa ao “sétimo
dia”, porque não é Deus, mas sim quando é preciso matar a insónia ou diluir o
cansaço. Depois viaja durante o amanhecer, pelos dias outonais, apanhando aqui
e além outros restos das horas dos outros, grafias em jornais, mais notícias e
rasuras, a sombra dos pássaros, o branco das gaivotas, o negro da noite ou do
instante em que o rolo cheio de tinta preta se deixa substituir pela trincha e
se imobiliza, escorrendo fios líquidos até ao limite, dele, do quadro e dos
nossos olhos desamparados.
Então é preciso descansar de novo
e olhar o riso ou a estranheza dos elementos pictóricos que dão corpo,
gravidade, talvez um sorriso meio escondido às coisas, na cada vez mais
previsível duração do mundo nocturno onde ainda nos recolhemos atrás do tempo
cósmico.
Rocha de Sousa/2014